Taveira's Advogados
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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Quantas vezes o mundo vai acabar?
Penso que só nós, humanos, podemos
contar uma história que começa assim:
“Foi logo depois que o mundo acabou.
As águas baixaram, a enorme arca encalhou no flanco de uma planície e a vida
rotineira recomeçou com suas esperanças de sempre, inclusive a de poder, um
dia, terminar…”
A arca de Noé não
era um Titanic, embora o Titanic tivesse uma inconfundível
inspiração mitológica. Mas o Titanic, aquele navio inafundável, fabricado com a
certeza da ciência, submergiu. Enquanto a Arca — construída na base da fé — não
soçobrou.
Por outro lado, o Titanic levava
milionários num passeio luxuoso e imigrantes pobres que iam “fazer a
América” naqueles velhos tempos que ela ainda podia ser feita.
É claro que ambos os navios tinham um
povo escolhido que sobreviveria. No caso do Titanic, testemunhamos a
sobrevivência habitual dos milionários e dos espertos. Os de terceira classe
morreram tão escandalosamente que as regras foram drasticamente modificadas. O
Titanic e a Arca de Noé representam, cada qual a seu modo, um fim de mundo.
A Arca, porém, como um instrumento de
salvação, não podia afundar. Ela corrigia erros. Foi uma advertência e um
recall do Criador para a humanidade.
Os filhos de Adão e Eva, híbridos de
barro, carne, osso, sopro divino e bestialidade não iam dar certo. Para quem
vive querendo começar a vida; para quem tem arrependimentos intransponíveis e
gostaria de zerar sua existência, a passagem bíblica oferece um conforto: até
mesmo o Criador — onisciente, onipotente e onipresente — teve seus momentos de
dúvida. Valeu a pena criar um intermediário, um ser entre os animais e os
anjos?
Não sabemos. O que se conhece,
entretanto, é que sempre há um grupo que se imagina escolhido e, volta e meia,
diz que o mundo vai acabar.
Os eleitos são salvos por alguma Arca
de Noé ou foguete intergaláctico como nos velhos e
esquecidos contos de Isaac Asimov e de Ray Bradbury. São
os escolhidos que dão testemunho de como o mundo acabou e — graças a umprofeta —
foi refeito na esperança de um aperfeiçoamento moral que custa e, às vezes,
chega.
No fundo, como diz a Dra.
Camélia, uma psicanalista admiradora de antropologia, esses mitos não falam
apenas do fim do mundo, falam — isso sim — da imortalidade dos
eleitos. Daqueles que estão além do mundo porque seguiram regras morais mais
fortes que o próprio mundo — esse planeta que, no fundo, é frágil e terminal se
não segue algum mandamento.
Vi o mundo acabar muitas vezes, disse
o professor. Primeiro pela água, depois pelo fogo, depois pelas bombas atômicas
do Dr. Strangelove.De 1000 passarás, mas a 2000 não chegarás! Estávamos
em 1948 e faltava tanto para o 2000 que eu me perdi. Afinal, havia muitas
coisas mais importantes para pensar e fazer do que me preparar para o fim do
mundo. E, no entanto, essa década de 2000 foi clara na demonstração de que eu
era mais um náufrago, a ser salvo pela paciência e pela generosa ternura
humana.
Por que será que, mesmo nestes tempos
de utilitarismo racional e de realismo capitalista, tanta gente ainda acredita
no fim do mundo?
Porque eles vão realizar uma façanha
e tanto: vão sobreviver ao planeta e sentir aquela onipotência apocalítica
típica dos dos milenaristas.
Mas, tirando as fantasias, o mito do
fim do mundo revela também uma insatisfação permanente com a vida, tal como a
experimentamos: com suas imperfeições, traições, picuinhas, faltas e covardias:
com a impossibilidade de seguir os ideais.
Quem sabe, diz esse mito de fim de
mundo, um dia tudo isso vai mudar e a vida neste mundo será justa e perfeita
promovendo, enfim, o encontro da teoria com a prática?
No fundo, o ocidente progressista e
capitalista que acumula cada vez mais dinheiro sempre foi tributário soluções
finais para a vida.
Outros povos se satisfazem em aceitar
o que reconhecem como parte e parcela de contradições impossíveis de escapar
quando se vive em coletividade. Mas nós, crentes no desenvolvimento da espécie
e nos estágios evolutivos, tendemos a confundir progresso técnico com avanço
moral e pensamos que nossas bombas atômicas são superiores aos arcos e flechas
dos nossos irmãos selvagens.
Neste sentido, o mito do fim do mundo
seria também uma advertência ao nosso estilo de vida fundado num consumo e numa
sofreguidão inesgotáveis. Um modo de dispor do planeta e dos seus recursos que
impedem o seu reconhecimento humano.
Essa, penso, seria o centro dessa
última onda de fim de mundo que acaba de passar. Um retorno apocalítico da
totalidade num universo marcado por uma cosmologia brutalmente individualista.
Mal o professor pronunciou essas
palavras e logo um aluno levantou a mão e perguntou: mas isso é mito ou
realidade? Afinal, não estamos mesmo chegando ao final de um estilo de
vida egoísta no qual pensamos cada qual em nós mesmos e todos apenas no nosso
país?
O mito revela também uma insatisfação
permanente com a vida, tal como a experimentamos: com suas imperfeições,
traições, picuinhas, faltas e covardias.
por Roberto DaMatta,
antropólogo
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