Lidar com uma doença tão complexa como o câncer é uma tarefa árdua que
exige equilíbrio físico e mental. Ao receber o diagnóstico, poucos correm atrás
de uma série de direitos assegurados pelas leis brasileiras para ajudar os
pacientes a enfrentar esta batalha, como sacar o Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço (FGTS) e o PIS/PASEP.
O Instituto Nacional de Câncer (Inca) estima que, neste ano, serão confirmados
mais de 40,5 mil novos casos de câncer no Rio Grande do Sul. No Brasil, o
número chega a 520 mil.
— É uma falta do Ministério da Saúde, que não tem tanto interesse em
divulgar. Além disso, a legislação está muito pulverizada, fragmentada. Se
as pessoas se conscientizassem de todos os direitos que têm, a doença causaria
um impacto financeiro menor — afirma a advogada pernambucana Antonieta Barbosa,
autora do livro Câncer — Direito e Cidadania, que já está na 14ª edição e teve
mais de 100 mil exemplares vendidos.
Um dos direitos mais fáceis de ser adquirido, o resgate do FGTS serviu como um
alívio para o técnico em telecomunicações e informática Érico Nunes Carvalho,
50 anos. Com este dinheiro, conseguiu pagar a anestesia e os médicos auxiliares
no procedimento cirúrgico para a retirada de um tumor no intestino, em 2008.
Logo após receber o diagnóstico da doença em estado avançado, Carvalho se
afastou do trabalho e passou a receber o auxílio-doença, um benefício mensal
que o segurado do Regime Geral de Previdência Social (INSS) tem após ficar
temporariamente incapaz de exercer as funções no trabalho por mais de 15 dias
consecutivos em virtude de doença. A incapacidade para o trabalho deve ser
comprovada através de exame realizado pela perícia médica do INSS.
Durante o tratamento, o morador de Porto Alegre lembra que esbarrou em inúmeros
impasses, como o descaso do plano de saúde, a quem já acionou judicialmente, o
desprezo dos médicos peritos e a lentidão da Justiça.
— Ocorre uma pressão velada. Como o câncer é uma doença interna e muitas vezes
nem aparento ter nada, os peritos pensam que estou fingindo. Eu já tive que
dizer para um deles: "Vamos fazer o seguinte: tu me dá a tua saúde e eu te
passo o câncer".
Outra crítica que Carvalho e outros pacientes costumam fazer sobre estes
profissionais é referente à especialização porque, para ser perito, basta
apenas ser médico, independentemente da área em que se formou. Ou seja, uma
pessoa com câncer pode ser avaliada por um pediatra, por exemplo, o que não
seria o mais indicado.
LIÇÃO DE CORAGEM
Descobrir que tinha câncer de mama no auge da juventude, aos 23 anos, não foi
uma tarefa fácil de administrar para Karen Moraes Eichler. Hoje, aos 33 anos, e
se tratando do terceiro tumor — entre o fígado e o rim — a assistente de
compras lembra que o momento foi difícil. Perdeu todo cabelo e realizou rádio e
quimioterapia. Após um curto período de repouso, Karen decidiu voltar a
trabalhar porque "não conseguia ficar em casa".
Quatro anos depois, descobriu um câncer no cérebro, o qual, ela suspeita, tenha
surgido pela falta de um medicamento — negado em perícia, pois, segundo ela, o
médico que a avaliou julgou que estava curada. Teve que voltar à quimio.
Em março deste ano, curada do tumor cerebral, descobriu que teria de voltar ao
tratamento. Mais consciente dos próprios direitos, requereu o auxílio-doença,
retirou o FGTS e pediu a isenção do Imposto de Renda e do IPVA. O dinheiro que
recebe ganhou um destino: pagar o plano de saúde e os custos dos medicamentos.
— Entendo isto como sinais. Mudei meus hábitos e estou preparada para
enfrentar. Tenho sonhos para realizar. O câncer não vai me derrubar.
QUANDO A JUSTIÇA FUNCIONA
Ao realizar exames de rotina durante as férias no Brasil, em dezembro ano
passado, a enfermeira porto-alegrense Neila Wolff Silva Villamizar, 42 anos,
foi confrontada com um nódulo no seio esquerdo.
— No primeiro momento, parece que a gente está levitando, o chão foge dos pés,
não se sabe o que fazer, fica em estado do choque. De noite, vai dormir com a
cabeça pesada e quando levanta acha que aquilo foi um sonho — relembra.
Mãe de dois filhos pequenos, Kendrick, sete anos, e Kenneth, 10, Neila garante
que teve de imprimir uma mudança radical na rotina e na forma de encarar o
câncer de mama. Com o marido morando ainda na Colômbia, contou com a ajuda dos
pais, com quem passou a morar, e da Justiça para lutar contra a doença. Pediu
resgate do FGTS, conseguiu o auxílio-doença e fez um requerimento para ter
acesso a um medicamento fundamental no tratamento, chamado Trastuzumabe. Foi
quando teve uma grata surpresa: descobriu que pacientes de Porto Alegre de um
tipo específico de câncer de mama — o dela — estavam abrangidos por uma ação
civil pública que garantia a droga gratuitamente. A medicação, que custa
mensalmente cerca de R$ 20 mil, apresenta uma melhora no prognóstico,
aumentando o tempo de vida livre da doença e a possibilidade de cura.
O requerimento foi feito antes da liberação, nesta semana, pelo Ministério da
Saúde, para disponibilizar o Trastuzumabe pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A
medida, que ainda pode levar 180 dias para entrar em vigor, deve beneficiar 13
mil mulheres no Brasil.
Apesar da fé e do pensamento positivo, a enfermeira conta que, quando realizava
a quarta quimioterapia, entrou em depressão com os efeitos colaterais. Neste
momento percebeu que este comportamento prejudica a recuperação.
— Fiquei duas semanas sem vontade de comer e descobri que a depressão só
prejudica você mesmo. Eu quero é ir para frente, me recuperar e dar ânimo para
outras pacientes. Essa é a minha atitude de vida atualmente. Quando a depressão
quer chegar, eu até canto uma musiquinha: "Quando a depressão bate no teu
coração, eu digo 'não, não, não'".
INFORMAÇÕES NÃO SÃO DIFUNDIDAS, DIZ
MÉDICO
Além de "Câncer — Direito e Cidadania", que é uma das poucas
bibliografias dedicadas a tratar dos direitos dos pacientes com câncer, algumas
instituições hospitalares, como o Hospital A.C. Camargo, em São Paulo,
organizaram o tema em formato de cartilhas. Apesar de estarem disponíveis na
internet gratuitamente, as publicações não são amplamente divulgadas.
O médico Stephen Stefani, oncologista do Instituto do Câncer Mãe de Deus,
admite que é reduzido o número de colegas que sabem minimamente ou que têm um
conhecimento um pouco mais aprofundado sobre o assunto.
— Este tipo de conhecimento não faz parte da agenda científica dos médicos ou
do currículo tradicional. E mesmo os que conhecem, não sabem o ritual para
conseguir estes benefícios. Mas estes são direitos fundamentais para o
tratamento. Não é um prêmio de consolação: é um direito de todo paciente.
Para sanar esta lacuna de conhecimento, a advogada Antonieta Barbosa sugere que
seja criada uma matéria sobre direito do paciente nas faculdades de Direito e
Medicina. Outra alternativa seria sistematizar workshops obrigatórios para
oncologistas.
Chefe do serviço de cancerologia cirúrgica da Santa Casa e professor associado
da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Antonio Nocchi
Kalil promete levar a ideia adiante para difundir as informações:
— Os médicos só falam quando são questionados. O envolvimento com a dor é tão
grande que acabam esquecendo de falar para o paciente destas possibilidades
materiais. Especialmente para os pacientes do SUS, que em geral têm menos
acesso a informação, e são os que mais necessitam — afirmou o médico.
ADVOGADA DO IMAMA QUESTIONA
INVESTIMENTOS
Advogada do Instituto da Mama do RS (Imama), Maria Cristina Franceschi aponta
uma saída para a maior difusão de informação sobre os direitos dos pacientes
com câncer: manter uma política permanente de conscientização. Para ela, o
governo precisa buscar clubes de mães, associações de bairro e organizações
não-governamentais para repassar o conhecimento.
— O artigo 196 da Constituição Federal afirma que a saúde é um dever do Estado,
não apenas um direito do cidadão. O governo deveria aplicar 12% do valor da
receita em saúde. No entanto, não é o que acontece, nenhum governo do
Estado aplicou este percentual nos últimos anos. O máximo a que se chegou foi
perto de 6%, ou seja, quase a metade do obrigatório — afirma a advogada.
DIREITOS ASSEGURADOS POR LEI
Aposentadoria por invalidez
Concedida quando for constatada a incapacidade para o trabalho. O valor do
benefício corresponde a 100% do salário de contribuição.
Auxílio-doença
No caso de empregado, concedido após o 16º dia de afastamento da
empresa.
Para os demais segurados, o benefício será devido a partir do início da
incapacidade. Em ambos os casos, o valor do benefício corresponde a 91% do
salário de contribuição.
Isenção do Imposto de Renda
Concedida a isenção aos trabalhadores aposentados (por invalidez ou não), sendo
mantida, no entanto, a obrigatoriedade de fazer a Declaração Anual de
Rendimentos à Receita Federal.
Saque do FGTS e do PIS
Pode ser feito em qualquer agência da Caixa Econômica Federal.
Saque do PASEP
Efetuado em qualquer agência do Banco do Brasil.
Prioridade na tramitação de processos
judiciais e administrativos
Prioridade no pagamento de precatórios
Quitação de financiamento habitacional
No caso de aposentadoria por invalidez, se houver cláusula específica no contrato
de compra e venda do imóvel.
Acesso gratuito a medicamentos
Necessários ao tratamento, bem como a exames laboratoriais e radiológicos,
órteses e próteses.
Beneficio de Prestação Continuada
(LOAS)
Corresponde a um salário-mínimo nacional e é concedido a não segurados da
Previdência Social que estejam incapacitados para o trabalho e não tenham quem
possa suprir sua manutenção.
Compra de veículo nacional adaptado ao paciente com desconto no IPI e no ICMS
Por exemplo, para mulheres que extraíram os gânglios linfáticos da axila em
razão do câncer de mama e para homens que retiraram os gânglios linfáticos
inguinais (da virilha) devido a um tumor na próstata.
INFORME-SE
Confira a cartilha criada pelo Hospital A.C. Camargo em
http://clic.rs/direitos—cancer
Para mais informações, acesse o site do Instituto Nacional do Câncer (Inca):
www.inca.gov.br ou entre em contato com a Previdência Social (INSS) pelo
telefone 0800 78 0191
PRESTE ATENÇÃO
Sob coordenação da advogada Maria Cristina Franceschi, começa a funcionar em 3
de agosto na sede do Imama, na Capital, um serviço jurídico gratuito para
auxiliar as pacientes com diagnóstico de câncer de mama a requerer seus
direitos.
Segundo levantamento do Instituto Nacional de Câncer (Inca), o Rio Grande
do Sul é o segundo Estado com maior incidência de câncer de mama, com projeção
de 81 casos a cada 100 mil mulheres no decorrer de 2012. Porto Alegre é líder
do ranking entre as capitais brasileiras, com cerca de 125 novos casos a cada
100 mil mulheres.